domingo, 1 de maio de 2011

Impunidade?!

(Manuel Maria Carrilho - DN)


A liberdade é indispensável, mas por si só ela não aponta caminhos. O 25 de Abril de 1974, para lá de trazer a liberdade, abriu caminho a um desígnio nacional, o dos três "Dês": descolonizar, democratizar e desenvolver. Foi em seu nome que se fundou um regime e se lançaram diversas vagas de "modernização" no País.


Infelizmente, essas vagas passaram quase sempre ao lado do essencial, sobretudo porque foram instrumentalizadas pelos interesses e pelas cumplicidades do betão - fosse ele rodoviário, turístico ou desportivo.

Foi por isso que, há dias, o jornalista do Le Monde em reportagem em Portugal escreveu que andar pelas auto-estradas nacionais permite, mais do que descobrir a geografia do País, percorrer e compreender a sua história recente. O que a obsessão nacional pelo betão revela, escreve ele, é a "ausência de um plano global de desenvolvimento da economia, é a promiscuidade entre o pessoal político e os empresários, é a porosidade entre o dinheiro público e os interesses privados."



É certo que não se podem negar, nem devem esquecer, os progressos que desde 1974 se fizeram em diversos domínios - basta olhar, por exemplo, para a taxa de mortalidade infantil ou para as percentagens de frequência escolar, nos vários níveis de ensino. Mas falhou-se realmente o essencial: a qualificação do território, das instituições e das pessoas, bem como a implementação de um modelo de crescimento criador de riqueza e a definição de um paradigma da sua justa redistribuição.

Nos nossos dias, é também ironicamente por "D" que começam os grandes problemas que enfrentamos: a descredibilização dos partidos e dos políticos, a desvitalização acelerada da nossa democracia e a degradação persistente das condições de vida dos Portugueses.

Pelo caminho, desperdiçaram-se irresponsavelmente milhões e milhões, não só de fundos europeus mas também de vastos programas de privatização. E pelo caminho ficou também muita energia e muito capital de esperança num futuro melhor. Porque agora o futuro, em vez de mobilizar, assusta. E é pela conservação do que se tem que a maioria se bate, olhando para o passado com uma inesperada nostalgia.

Tudo isto é, talvez, compreensível. Mas, quando isto acontece, o regime, se não está morto, está sem dúvida moribundo. O constitucionalista Jorge Miranda pôs recentemente o dedo na ferida, ao afirmar que são directórios quase clandestinos que comandam as oligarquias partidárias, as quais, por sua vez, tudo dominam, arrastando para um abismo de desprestígio o Parlamento e a imagem da democracia. Tudo com uma impunidade surpreendente, que apenas enfrenta aqui ou ali uma ou outra manifestação mais veemente, mas quase sempre sem consequências significativas.

E, no entanto, o País vive a mais grave crise das últimas décadas. Devido a uma situação internacional que este ano (pelo lado americano, mas também britânico) ainda nos pode reservar algumas fortes surpresas. Devido ao esboroar da Europa, que de "União de Estados" se transforma, cada vez mais, em união de credores e de devedores. E por cá, devido à falta da mais elementar visão de médio/longo prazo, só se quiseram ver vantagens no euro, varrendo para debaixo do tapete todos os previsíveis problemas, deixando a produtividade cair ainda mais e tornando o crédito numa solução milagrosa para todas as situações.

Nenhum dos nossos líderes das últimas décadas foi capaz de construir uma visão que escapasse a estas armadilhas: Cavaco Silva rendeu-se ao betão, Guterres baralhou-se com a falta de maioria e acabou nos estádios de futebol e no orçamento limiano, Durão Barroso só pensou em escapar quando descobriu o País de "tanga". E Sócrates cedeu ao deslumbramento financeiro e tecnológico, generalizando o persistente padrão do betão a tudo: energia, saúde e até educação!

Tudo sem visão, mas também tudo a crédito. É por isso que temos agora connosco o FEEF, o BCE e o FMI, que vão confrontar a demagogia com alguns factos. Na tenda do poder vai ter de entrar algum oxigénio, por muito que isso perturbe. Começou-se com algumas parcerias público privadas (PPPs), cujo custo total atira para os 60 mil milhões de euros, cerca de um terço do PIB português!.... Isso já implicou que o défice de 2010 fosse corrigido para 9,1%, quase 50% acima dos 6,8 inicialmente anunciados!

As estatísticas foram o grande aliado da mitomania deslumbrada que nos tem governado nos últimos anos. Mas, como diz o Povo, "quem com ferro mata, com ferro morre". E o bumerangue dos números aí está, e é assustador: Portugal é a economia mais lenta do mundo e a única em recessão em 2012. Estamos com o mais baixo crescimento dos últimos 90 anos. A nossa dívida pública é a pior dos últimos 150 anos, mesmo sem contar com as empresas públicas ou as PPP. O nosso desemprego é o mais alto desde que há registos. Temos a segunda maior onda de emigração do último século e meio, com uma das maiores "fugas de cérebros" registadas pela OCDE. A nossa taxa de poupança é a pior dos últimos 50 anos e continuamos com o dobro do abandono escolar de toda a União Europeia, sendo o 2.º pior dos 27, logo a seguir a Malta.

Nada disto, a julgar pela entrevista que na terça-feira concedeu à TVI, parece perturbar o nosso "comandante" Sócrates: ele continua a repetir mecanicamente o álibi vitimizante que aqui descrevi há duas semanas, insistindo em que a "culpa" não é do rombo do navio, mas da água que teima em entrar...Isto coloca os Portugueses perante uma escolha difícil, mas clara: a de manter, ou não, o rumo que o País tem seguido nos últimos tempos. É a possibilidade desta escolha que, acima de tudo, celebramos sempre no 25 de Abril.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Este blogue é gerido por Zé da Silva.
A partilha de ideias é bem vinda, mesmo que sejam muito diferentes das minhas. Má educação é que não.