(Alberto Gonçalves - DN)
Nasci em Matosinhos e vivo a maior parte do tempo em Matosinhos. Durante décadas, assisti à transformação de uma vila bonitinha e animada numa cidade suburbana, feia, repleta de lojas fechadas e onde à noite as ruas se esvaziam como se houvesse recolher obrigatório. Aturei o PS a mandar na autarquia desde o Paleolítico e a trazer aqui os próceres nacionais de modo a abençoá-los no mercado do peixe e na lota. Soube da morte de Sousa Franco antes de a notícia chegar às televisões. Sou vizinho do armazém que embala o Magalhães e constrói o futuro tecnológico dos rústicos. Já vi de tudo em Matosinhos. Nunca vira o que sucedeu no passado fim-de-semana.
Teoricamente, tratou-se de um congresso socialista. Na prática, foi outra coisa. Na Exponor houve um palco, sanfonas retiradas de filmes, luzinhas, telas gigantes, efeitos "multimedia", uma multidão de crentes e clientes e um guru, travestido de estadista, que ensinava à multidão os clichés a repetir. Ou ele ou o caos. Ou ele ou as "aventuras". Ou ele ou um país falido, que por acaso é o que temos graças, em larga medida, às proezas do guru. Hesito em decidir se os rituais de tão tresloucado circo imitavam uma daquelas sessões de motivação e auto-ajuda ou um culto evangélico. Pensando bem, o congresso socialista foi exactamente o que um congresso socialista deve ser: uma máquina de pregar aos convertidos e assustar os restantes.
O chato é que, embora alimentada a idiotia, a máquina funciona. Aliás, isso explica parcelarmente que o partido responsável por uma bancarrota sem muitos precedentes e por um rol de mentiras sem precedentes nenhuns pareça, hoje, mais próximo de voltar a mandar no país do que a oposição que lhe tocou literalmente em sorte.
A parcela da explicação que falta remete para a oposição, se esse conceito define adequadamente o PSD do dr. Passos Coelho. Nas circunstâncias actuais, qualquer alternativa sofrível à toleima do PS estaria com cinquenta por cento nas sondagens. O PSD, porém, faz o que pode para não se mostrar sofrível nem alternativa. Em poucos dias, conseguiu: a) arranjar uma trapalhada em volta do PEC IV e das reuniões/telefonemas trocados com o primeiro--ministro; b) ouvir recusas (provavelmente desejadas) de cada "notável" convidado a concorrer a deputado; c) escolher os "cabeças de lista" distritais segundo os critérios ex-candidatos-presidenciais-com-votos-hipotéticos-à-solta e colunistas-inteligentes-que-não-criticam-o-Pedro; d) manter-se em escrupuloso silêncio sobre o programa de governo. A última alínea não é disparatada: por este andar, o PSD só governará quando os maluquinhos da Exponor lhe pedirem ou as galinhas do dr. Nobre tiverem dentes, de acordo com o que acontecer primeiro.
Entre o desesperado apego ao poder do eng. Sócrates e o desprendimento suicida do dr. Passos Coelho, Portugal balança. Logo que caia, convém rezar para que Deus nosso Senhor, ou o FMI, o apanhe. Se os finlandeses deixarem, claro.
Segunda-feira, 11 de Abril
De que vale o FMI entrar se o BSS não sair?
Com esforço, sob o barulho das acusações mútuas entre políticos, também se consegue ouvir as receitas para a crise provenientes da "sociedade civil". Há as sofríveis, há as duvidosas, há as absurdas, há as furiosas e há, naturalmente, as de Boaventura Sousa Santos.
Em artigo no Público, a sumidade beirã proclama que o FMI é malvado e serve os interesses dos mercados, das agências de rating e dos EUA. Se bem percebi o artigo (o que, dada a mistura de citações em inglês com o português incipiente, não é fácil), a alternativa, portanto, consiste no seguinte.
Em primeiro lugar, Portugal deve contrair empréstimos "junto de países dispostos a acreditar na capacidade de recuperação do país, tais como a China, o Brasil e Angola". Em segundo lugar, Portugal deve iniciar "um diálogo Sul-Sul, depois alargado a toda a Europa, no sentido de refundar o projecto europeu, já que o actual está morto". Em terceiro lugar, Portugal deve "promover a criação de um mercado de integração regional transcontinental, tendo como base a CPLP e como carros-chefes (sic) Brasil, Angola e Portugal". Por fim, Portugal deve "usar como recurso estratégico nessa integração a requalificação da nossa especialização industrial em função do extraordinário avanço do país nos últimos anos nos domínios da formação avançada e da investigação científica".
No fundo, o prof. Boaventura prescreve a Portugal as mezinhas que lhe têm sustentado a carreira: aproveitar a crendice alheia; viver da caridade alheia; fugir da competição; voltar-se para as ditaduras do Terceiro Mundo e, no caso do Brasil e dos "carros-chefes", para as alegorias carnavalescas; esperar que algum pasmado confunda a nossa manhosa letargia com um "recurso estratégico".
Percebe-se que na Bolívia e na Venezuela, potentados que recebem o prof. Boaventura com tapete vermelho e banda filarmónica, tais delírios, que não vale a pena comentar, se assemelhem a um "extraordinário avanço" na "formação avançada" e na "investigação científica". Mas dói aceitar que numa nação europeia do século XXI abundem alminhas capazes de levar a criatura a sério.
Se, ao contrário de tantos, não tenho soluções para a crise, tenho pelo menos o esboço de uma explicação: um país que ouve atentamente as receitas do prof. Boaventura legitima a própria penúria. Mais ainda, merece-a.
Sexta-feira, 15 de Abril
Já não há heróis
À semelhança de inúmeros portugueses, estou indignado com o facto de o dr. Fernando Nobre ter aceitado o convite do PSD para ser parlamentar e, condição sine qua non, presidir ao Parlamento. De início, deixei a minha indignação na página do Facebook do fundador da AMI. Quando fecharam a página, vi-me obrigado a mudar a indignação para aqui. Mas a indignação não muda.
O problema não está tanto na promessa quebrada pelo dr. Nobre, que ainda há umas semanas prometeu nunca aceitar um cargo partidário. Se o partido em questão fosse o Bloco de Esquerda, não haveria nada a dizer. Se fosse o PCP, a coisa passava. E mesmo um saltinho para o PS talvez se aceitasse com um resmungo ou dois. O problema é tratar-se do PSD, que como toda a gente sabe é social-democrata, logo de direita, logo fascista, logo praticamente nazi. Eu não confiei ao dr. Nobre o meu voto, a minha devoção, as chaves de minha casa para assistir à destruição dos princípios indestrutíveis que o orientavam.
Eu acreditei piamente que o dr. Nobre testemunhara uma criança a correr atrás de uma galinha para lhe retirar o pão do bico. Acreditei que o dr. Nobre se opunha ao capitalismo selvagem que obriga crianças e galinhas a correrem desvairadas. Acreditei que o dr. Nobre responsabilizava o "ultraliberalismo" (sic) por cada desgraça da Terra. Acreditei que o dr. Nobre achava o Hamas uma associação humanitária. Acreditei que o dr. Nobre seguia o exemplo de Che Guevara e pensava realmente que, nas belas palavras de El Comandante, "isto só lá vai com metralhadora". Acreditei que o dr. Nobre apoiara convictamente Francisco Anacleto Louçã em 2009. Acreditei que o dr. Nobre acreditava em extraterrestres. Acreditei, em suma, que o dr. Nobre era uma pessoa lúcida e confiável.
Não volto a acreditar. Hoje, o Facebook desaparecido é a melhor metáfora das ideias belas e pelos vistos descartáveis que o dr. Nobre hipocritamente defendeu. Depois de o insubmisso Alegre se submeter aos interesses instalados, acontece isto. Quem disse que os heróis brilhavam nas crises?
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