(Rui Baptista, in De Rerum Natura)
“Portugal é uma fazenda, uma bela fazenda possuída por uma parceria. Como vocês sabem há parcerias comerciais e parcerias rurais. Esta de Lisboa é uma ‘parceria política’, que governa a herdade chamada Portugal” (Eça de Queiroz, 1845-1900).
Em uso de eufemismos, por erros da governação, por má gestão bancária, por um sindicalismo irresponsável que, em horas de asfixia económica portuguesa, ameaça voltar à rua para exigir maiores salários e menos horas de trabalho, Portugal chegou ao ponto de ter que mendigar ajuda externa. Embora em mau presságio, pelo receio de impiedosas medidas restritivas que se prenunciam com a chegada do Fundo Mundial Internacional, quero ainda crer - sem o pessimismo de Jorge de Sena quando escreveu que “Portugal não precisa de ser salvo, porque estará sempre perdido” - que o "nobre povo", exaltado em estrofe do Hino Nacional, encontrará, em responsabilidade para com as gerações vindouras, uma solução em penosos anos que passarão a fazer parte do quotidiano dos justos que em nada contribuíram para o desastroso estado de coisas a que chegámos. Não nos ensina a vox populi que “paga o justo pelo pecador”?
Ou seja, os sacrifícios mais violentos vão ser exigidos “aquele povo que lava no rio” e que vê a sua escanzelada bolsa mal chegar, ou não chegar mesmo, para as necessidades mais primárias de alimentação e de um tecto decente para se abrigar e, ainda, a uma cada vez mais sacrificada classe média que vê o seu poder de compra diminuir drasticamente. Em contrapartida, como quem vive horas de glória de festejos partidários, esteve o Partido Socialista, em “dimensão espectacular cada vez maior”, reunido no XVII Congresso Nacional, um congresso transformado em tubo de ensaio de uma campanha eleitoral, como quem faz, simultaneamente, uma festa de casamento e de aniversário de um dos nubentes.
A hora foi, pois, de festejos e consagração. Esqueçam-se os desempregados sem pão para a boca dos filhos. Aperte-se o cinto aos que menos podem por não usarem suspensórios de ordenados, sinecuras e aposentações de muitos milhares de euros mensais e poucos anos de trabalho ao serviço do bem público, em justificação esfarrapada dos seus beneficiários. Desprezem-se os reformados mais idosos em horas de desespero quando vítimas de achaques próprios da idade e que, no humano espírito de sobrevivência, ou na simples intenção de minorarem as suas dores físicas e o seu sofrimento psíquico, despendem verdadeiras fortunas nas farmácias. Segundo consta, passarão a ter o tecto de descontos em despesas com a saúde diminuído para efeitos de deduções fiscais em sede de IRS, como se estar doente fosse um anátema ou um luxo idêntico a passar férias nas Bahamas ou adquirir uma "bomba" de alta cilindrada para deslocações em fim-de-semana a países vizinhos, enquanto não for construído o TGV para ser utilizado por quem enjoa em viagens aéreas.
Por outro lado, fala-se também em cortes no subsídio de férias e no subsídio de Natal (desconhecendo-se a percentagem desses cortes). Esta última medida, a acontecer, terá como consequência a falência de médios e pequenos estabelecimentos comerciais que sobrevivem à custa de balões de oxigénio das vendas natalícias, passando a recair sobre o já martirizado povo (que não usufrui rendimentos de economias paralelas), sobrecarregado por uma já tão pesada carga fiscal, o ónus de pagar os impostos, que, ipso facto, deixarão de ser cobrados pela fazenda pública. Aumentará, ademais, a taxa de desemprego, com particulares consequências na população jovem, de meia-idade ou, mesmo, mais idosa, aumentando a instabilidade socioprofissional que mina, de há tempos a esta parte, uma juventude de licenciados que é obrigada a ter que lamentar os seus estudos como um sacrifício vão para si e para o agregado familiar que os suportou.
E porque, para Albert Einstein, “é a tradição que faz aquilo que somos”, a política ou, melhor, a politiquice secular do bocejo das bancadas parlamentares obrigadas a ouvir tribunos “de palavras sonoras, e tão sonoras quanto sonoras apenas, baptizadas pelos franceses de ‘la piperie des mots’ ” (Tomaz de Figueiredo), uma vezes, a defenderem políticas de compadrio, outras vezes, em proveito próprio dos que juram, sem corar, estar ao serviço do povo, recomenda que se acolha o conselho de Mouzinho da Silveira ao próprio filho para que “fugisse de seitas e partidos como de uma lepra do tempo”.
Não nos deve surpreender, portanto, que, neste ocidental rectângulo, em início de um novo milénio, se herdem exemplos de uma política que nos chega, também, de finais do século XIX, na prosa elegante de Eça de Queiroz, de minha especial veneração pela crítica mordaz da sociedade da época e dos seus hábitos descritos em páginas admiráveis, algumas delas de parceria com a Ramalhal figura "em farpas à ‘Velha Tolice Humana’ com cabeça de touro”. Esta notabilíssima personagem literária do Cenáculo lisboeta, ao considerar que “o riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica”, escreveu este naco de prosa de cáustica ironia em exprobação aos políticos do seu tempo:
“É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm ‘imenso talento’. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, têm, à parte os disparates que fazem, um ‘talento de primeira ordem’! Por outro lado, a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de ‘robustíssimos talentos’! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta, portanto, este facto supra-cómico: um país governado ‘com imenso talento’, que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a ver: que, como todos os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!”
Mas será que a política em Portugal continua tal como outrora sem emenda?
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