sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Denunciantes

(JN)

Os jornais anunciaram que, a partir de agora, é oficialmente reconhecida a nobre profissão de denunciante. Já tardava, é um facto. Mas pronto, antes tarde que nunca. Todos sabemos como a nobre arte da denúncia tem sólidas raízes entre nós. No tempo do senhor D. João III (e nos tempos que depois se seguiram...) muitos foram os que acabaram nas fogueiras da Inquisição, denunciados por vizinhos, familiares ou amigos, prontos a jurar que os tinham visto, por exemplo, "a ter comércio com o demónio", ou a "apartar-se da nossa santa fé católica, passando-se à lei de Moisés, vestindo camisas lavadas aos sábados, e jejuando às segundas e quintas, e não comendo carne de porco".


Sabe-se como a nossa santa fé lhes ficou eternamente grata.


Muito mais tarde, nos saudosos tempos do Estado Novo, a nobre arte da denúncia foi de novo reinstaurada. Uma legião de impolutos cidadãos, amantíssimos esposos e extremosos pais de família, encarregava-se de escrever cartas denunciando vizinhos, colegas de trabalho, familiares, amigos, ou vagamente conhecidos, jurando que os tinham ouvido falar contra a ordem estabelecida, denegrindo a figura do sr. presidente do Conselho, ou pondo em causa a nossa patriótica presença em África, ou ouvindo rádios a soldo de potências inimigas estrangeiras, ou acolhendo gente suspeita em suas casas pela calada da noite. Assim o juravam e assinavam, a bem da nação.


Sabe-se como a nação lhes ficou eternamente grata.


Como se vê, está-nos na massa do sangue.


Agora, se alguém suspeitar de corrupção - as autoridades ordenam que se denuncie imediatamente.


Com a net é uma limpeza, pena ela não existir nos tempos do senhor D. João III ou do sr. dr. Oliveira Salazar, bom jeito tinha dado.


Claro que há uma triagem - dizem.


Claro que há uma investigação - dizem.


Claro que os tempos são outros - dizem


Mas os denunciantes, lá no fundo, nunca mudam.

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