OPINIÃO
A origem das “cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da
sociedade.
Nos espólios que tenho
organizado relativos ao século XX português há uma constante que os atravessa a
todos, sejam de que natureza for, que é a presença maciça de “cunhas”. Literalmente milhares de “cunhas”, que aumentam
quanto mais poderosas forem as funções daquele a quem se pede um favor.
Mas esta regra não é assim tão evidente,
visto que há também muitas centenas de “cunhas” para pessoas que não tendo
altas funções na burocracia do Estado estão colocados numa situação estratégica
para concederem favores pessoais de emprego e de carreira. Dada a natureza dos
espólios em que tenho trabalhado, a maioria das “cunhas” exerce-se em relação
ao Estado e aos seus corpos e, depois do 25 de Abril, aos partidos políticos ou
por via dos partidos políticos tendo também como destinatário o Estado. Os
partidos políticos tornaram-se com o tempo e a democracia o lugar da “cunha”,
com maior ênfase para os que acedem ao poder político central, mas também com
grande dimensão ao nível autárquico.
Tendo lido muitas destas “cunhas” em cartas clássicas, notas de telefonemas, notas pessoais, etc. não tenho dúvidas em afirmar que quem não dá um papel central na história social portuguesa à “cunha” não conhece Portugal. Faça-se a justiça de dizer que o nosso país não é caso único, a “cunha” e o patrocinato estão muito mais disseminados pela Europa, mais a Sul do que a Norte, do que se pensa. Acrescento mais: penso que o papel da “cunha” pouco diminuiu na sociedade portuguesa, como alguns pensam. Só mudaram os processos e os destinatários, e com o declínio de muita da nossa economia, em particular na indústria, o Estado tornou-se o verdadeiro centro das “cunhas” e os aparelhos partidários o seu principal veículo.
Trato aqui essencialmente da “cunha”
individual, a favor do próprio, quase sempre associada ao emprego ou a
movimentos numa carreira, nomeações e retribuições, e nalguns casos
recompensas, condecorações, para o próprio ou para os seus próximos,
familiares, amigos, correligionários e conhecidos. “Pedidos” de outra natureza
implicando benesses, interesses, negócios, também são comuns, mas são em muito
menor número e só raramente estão no limite do tráfico de influências ou da
corrupção sugerida ou tentada. Tal tem a ver com a natureza dos interlocutores,
mas pode também estar sub-representado pelo facto de estarmos ainda num mundo
em que o papel, a carta e a correspondência, são quase o meio único de
contacto, o mundo antes do email. E há
coisas que não se colocam num papel.
Os espólios que tenho em mente, dois são
de personalidades de relevo político na vida pública depois do 25 de Abril, um
Primeiro-ministro e um Presidente da Assembleia da República, outro é um
advogado oposicionista, abastado e de uma família com meios, que também
prosseguiu a sua actividade política depois do 25 de Abril e os outros, mais
antigos no tempo, um é de um militar de carreira, de patente média, mas
colocado no Estado-Maior, outro de um ministro do Estado Novo. Com excepção
deste último, que é de menor dimensão, todos incorporam milhares de documentos,
correspondência, etc. e cobrem desde a primeira república até ao início do
século XXI. E todos estão
cheios de “cunhas”
A origem das “cunhas” cobre todas as
classes sociais e todas as áreas da sociedade. Há algumas
“cunhas” que se percebem ter origem em pessoas muito “humildes” e há “cunhas”
vindas de pares do destinatário e nalguns casos de seus superiores. Do mesmo modo, não há uma
diferenciação significativa entre as “cunhas” de pessoas quase analfabetas, que
lutam com a caligrafia para escrever uma simples carta, e professores
universitários e intelectuais: todos exercem a activa tarefa de meter “cunhas”.
No caso do militar referido, que
coleccionava meticulosamente a correspondência que recebia atando-a com um
cordel, e que atingiu a patente de coronel, há um número significativo de
“cunhas” de militares com patente superior, com uma boa representação de
oficiais-generais. Ele acelerava os “processos”, autorizava ou impedia
transferências e isso tinha muito valor. No caso do advogado é pedida muitas
vezes a sua “recomendação” para um colega ou amigo, visto que o meio que
frequentava o colocava em contacto com pessoas que eram “dadoras” de emprego.
As cunhas aos políticos de topo ou são
“pedidos” de anónimos que pretendem ver rectificada uma situação que pensam ser
prejudicial e injusta, ou são, “pedidos “ vindos de personalidades partidárias
que usam essa condição para pedirem, ou em muitos casos reivindicarem, lugares
como os de deputado, ou lugares tidos como sendo de confiança política, na
administração central e local. As “cunhas” para lugares de deputados,
associados a muita intriga contra outros pretendentes ao mesmo lugar, são
reivindicadas em nome da biografia e fidelidade partidária: eu que fiz isto e
aquilo pelo “nosso” partido tenho direito a ter este lugar ou esta nomeação.
Outra fórmula muito comum, é “essa” administração (de uma empresa pública, por
exemplo) é constituída pelos “outros”, que não fazem outra coisa que não seja
prejudicar os “nossos”, pelo que deve ser mudada e aqui estou eu disponível.
Para a Caixa, para a CP, para a TAP, para o Porto de Lisboa, para este
Hospital, para estes Serviços Municipalizados, etc.
Pensava eu que havia algum incómodo e
vergonha em pedir “cunhas”, mas parece tão natural que não espanta quem pede,
nem quem a recebe. Pedir
uma “cunha” é colocar-se numa situação de ficar a dever um favor e presumia eu
que havia um factor de humilhação em fazê-lo. Mas isso não impede que haja
pessoas que metem “cunhas” a seu próprio favor como quem respira. Aliás a
generalização da “cunha” a todos os níveis sociais como uma prática não só
consentida como aceite com normalidade, é um dos factores mais decisivos para a
baixa qualidade dos serviços públicos e da burocracia portuguesa.
A massificação desses serviços, com o
aumento dos funcionários, depois do 25 de Abril teve o efeito positivo de
diminuir a relevância da “cunha” individual, embora não a afastasse das
carreiras e hierarquias. Tive ocasião de conhecer bem, antes do 25 de Abril,
uma instituição, uma grande biblioteca municipal, em que praticamente toda a
gente, do director aos funcionários que recebiam as requisições e iam buscar os
livros, estava lá por “cunha”, naquilo que era tido como um prémio de um
trabalho fácil, sentado a dormitar a um canto. O pesadelo que isso representava
para os leitores comuns era enorme. Como era também regra nesses tempos, quando
o leitor era um amigo do director ou alguém de relevo na micro-sociedade do
Estado Novo, os salamaleques e a diligências eram penosas de se ver.
Depois do que li nesses papéis, uns mais
antigos e outros menos, coloquei-me a dúvida: será que nada mudou? E inclino-me
para responder que não, pouca coisa mudou. A “cunha”
continua a ser crucial na vida portuguesa, embora hoje tenha outros nomes e outra
circulação. Mas a
proximidade ao poder, a qualquer poder, continua a ser uma vantagem enorme na
obtenção de vantagens injustas e no bloqueio ao mérito
Os “facilitadores” vivem desse mundo e olhando para
certas carreiras mesmo no topo do estado a pergunta é como é que chegaram lá.
Como é que meia dúzia de pessoas sem qualquer carreira, saber académico,
experiência de vida, trato do mundo, podem mandar nalguns casos mais do que um
Primeiro-ministro ou um Presidente da República, ao deterem o controlo dos partidos?
A resposta é: meteram muitas “cunhas” e
prestaram muitos serviços numa fase da vida, e facilitaram muitas “cunhas”
noutra. São espertos e hábeis. Conhecem-se entre si e sabem melhor do que
ninguém as regras do jogo. Uns sofisticaram-se, outros não, mas há “espaço”
para todos. Mas o seu efeito na vida pública é baixar os níveis de qualidade,
estiolar a competição política, controlar o seu território com mão de ferro, e
gerar à sua volta um círculo de iguais. E pôr em risco a democracia.
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