quinta-feira, 9 de abril de 2015

Aspectos da poesia de louvor a José Sócrates



Ricardo Araújo Pereira
Crónica publicada na VISÃO 1152, de 2 de abril de 2015
(como de costume, os realces são de minha autoria)


Trata-se de uma poesia que lamenta não ter acesso a processos judiciais, o que é bastante original.



Após a publicação do segundo hino de homenagem a José Sócrates, os principais observadores chegaram a algumas conclusões interessantes.

A primeira, e mais evidente, foi esta:

entre os maiores apoiantes do antigo primeiro-ministro, não há ninguém com ouvido para a música.

Creio que talvez haja aqui uma precipitação.

Na minha opinião, a desarmonia de ambas as canções pretende obter um efeito duplo:

colocar em evidência o carácter também desarmónico da justiça portuguesa e infligir ao ouvinte um sofrimento semelhante ao que José Sócrates padece no cárcere.

No segundo hino, os versos

"se quiseres dizer presente
Portugal vai estar contigo
amanhã"

parecem ser interpretados por um tecido de vozes que inclui um apreciador contumaz de bagaceiras, duas feirantes e um coro de, pelo menos, meia dúzia de leitões.

Nestes hinos de homenagem, a poesia é ainda mais interessante do que a música.

O poema do primeiro hino é, à maneira de Neruda, uma canção desesperada.

O poeta começa por interpelar o próprio Sócrates:

"Diz-me porquê, diz-me
Nós não sabemos nada".

Trata-se de uma poesia que lamenta não ter acesso a processos judiciais, o que é bastante original.

Estamos perante um poema que substitui as perguntas, já estafadas, da poesia lírica (por exemplo: "Qual é a essência do amor?"), por uma questão que mergulha nos problemas concretos da vida ("Quais são, afinal, os fundamentos legais desta prisão preventiva?")

A primeira quadra termina com a promessa

"Mas resistiremos por ti
Até que seja madrugada"

indicando que os apoiantes de Sócrates têm coisas combinadas para a manhã do dia seguinte.

Resistem até de madrugada, mas depois, provavelmente, têm de ir trabalhar - o que volta a introduzir no poema um tom prosaico, lembrando uma vez mais que estamos a falar de gente de carne e osso, que sofre, trabalha e canta francamente mal.

Mais à frente, surge um verso irónico: "Ser livre não tem preço". Uma evidente referência à liberdade de Ricardo Salgado, cujo preço foi, precisamente, três milhões de euros.

No segundo hino, o poema conta uma história:

"Era uma vez uma criança
que sonhava ver nos montes ventoinhas a rodar"

O poeta leva-nos para a infância de Sócrates, um menino que, como tantos, fantasiava com a instalação de dispositivos geradores de energias alternativas.

A intenção do poema é óbvia:
os projectos de José Sócrates foram sonhados na infância, e nenhuma criança sonha com corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

O ex-primeiro-ministro continua a ser aquele menino, o que agrava o sentimento de injustiça relativamente à sua detenção.

Não se pune um menino com a prisão.

Orelhas de burro talvez sejam um castigo apropriado. Uma palmada, no máximo. É curioso notar que este menino venceu, nas eleições, outro menino, o menino guerreiro.

Portugal é uma brincadeira de crianças.

Isto de alguém acabar preso é uma novidade que sobressalta. Não admira que os poetas se agitem

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