domingo, 17 de fevereiro de 2013

Ao que chegámos


NUNO SARAIVA



(Nuno Saraiva - DN de ontem)

Vivêssemos nós na antiga Gália ocupada, e acharíamos que o céu já estava a cair-nos em cima da cabeça.

Com uma taxa de desemprego sem precedentes
e uma carga fiscal a roçar a obscenidade,
com uma recessão que atinge valores próximos dos de meados da década de 70 do século passado
e um Estado cada vez mais intrometido na nossa vida quotidiana - veja-se agora o incentivo à "bufaria" que é a penalização dos consumidores que não pedem faturas -, a pergunta que se impõe é, citando o grande filósofo/educador Fernando Ulrich, o País ainda aguenta?

O cônsul do império, Pedro Passos Coelho, acredita que sim. Na Assembleia da República, garantia, ainda não satisfeito com a sua obra, que "não estamos pior do que quando começámos". Se o primeiro-ministro se refere à consolidação das contas públicas, terá alguma razão. Mas de que serve a obsessão com o défice - que, aliás, não está a ser cumprido - se no fim da linha, que é como quem diz do ajustamento, não houver economia?
Ontem, quando confrontado com a pergunta "o que é que o senhor está a fazer no Governo?", Passos Coelho socorreu-se, mais uma vez - e apesar das juras solenes de que nunca o faria - da pesada herança socialista.

Quase 20 meses depois de ter tomado posse, esta é uma desculpa que já não cola. Ainda para mais quando são já os próprios membros da maioria que suporta o Governo que identificam como causa para o "ligeiríssimo" desvio entre previsões e resultados reais o arrefecimento da economia europeia.



Isto é, para o Governo,
  • as condicionantes externas são válidas para desculpar a incompetência da governação às terças, quintas e sábados.
  • Às segundas, quartas e sextas a dimensão internacional da crise desaparece e esta passa a ser apenas consequência da "tragédia" socrática que se abateu sobre Portugal.

Em matéria de seriedade estamos, pois, conversados.

Apesar das evidências que apontam para uma contração do produto para o dobro daquilo que o Governo inscreveu no Orçamento do Estado para este ano, o primeiro-ministro não vê ainda sinais de espiral recessiva.

Já não nega, porém, que poderá vir a ter de fazer uma revisão das metas e das previsões.

Mas, que diabo, não era óbvio para todos que chegaríamos aqui?

 Foi mesmo preciso destruir 203,6 mil postos de trabalho em apenas um ano?

E não terá sido, prevendo já o arrefecimento económico na Zona Euro, para arranjar receitas à bruta que se aumentaram colossalmente os impostos da maneira que todos sentimos?

E, que mal pergunte, não era este ano da graça de 2013 o da inversão de ciclo e da entrada numa trajetória de crescimento "na ordem dos 3%, 4% ou até mesmo 5%", como profetizou o grande farol António Borges?

Estamos pois, é inegável, à beira do abismo.

E, como diria um grande filósofo do futebol, há quem seja firme e determinado e esteja pronto a dar o passo em frente, mesmo que para isso seja necessário afundar um país inteiro.

Esta ideia que pretende impor-se de que não existe alternativa a este caminho é típica de regimes totalitários.

É aliás daí, do totalitarismo, que vem a inspiração para ideias tão peregrinas como a da criação de milícias populares que denunciem os comerciantes malandros que não passam faturas, ou, pior ainda, a obrigatoriedade de fazer constar dos talões de compra dados pessoais do consumidor.

Estas, como por exemplo a intenção de fiscalizar os fumadores dentro dos carros, são ideias de um Governo que foi eleito com base na premissa de que o Estado é um empecilho e deve fazer-se sentir o menos possível na vida dos cidadãos.

Mas, ironia das ironias, a presença do Estado nunca foi tão percetível, em democracia, e pelas piores razões, como com o atual Governo.

Em democracia não há pensamento nem partido único.

E, por definição, há sempre alternativas. Nem que seja o inevitável alargamento dos prazos de maturidade para pagamento dos empréstimos que contraímos. É óbvio que, para que elas se manifestem, é necessário que as oposições tenham discurso.

Honra lhes seja feita, o PCP e o BE são claros e coerentes no caminho que propõem: romper com a troika e rasgar o "Pacto de Agressão".

E o que diz o PS? O que é que fará de diferente? Em que é que se vai distinguir da atual maioria? Que relação terá com o Memorando, com a dívida e com o embuste apelidado de "reforma do Estado"?

Pacheco Pereira sugeriu esta semana, por exemplo, que os socialistas deviam ter a coragem de fazer uso da sua capacidade de "veto informal", isto é, que em matérias fundamentais como o corte permanente de 4 mil milhões nas despesas sociais do Estado, no aumento do salário mínimo, nas taxas moderadoras da saúde, ou nas condições de acesso ao subsídio de desemprego o PS anunciasse, de forma solene, que fará exatamente o contrário daquilo que a maioria atual está a pôr em prática e que reporá todas as prestações que agora venham a ser cortadas.

Isso, naturalmente, obrigaria a troika a negociar e a rever a sua receita que tão maus resultados tem dado. Mas, para isso, é preciso ter argumentário e capacidade de proposta e, sobretudo, coragem para, se necessário for, romper com um memorando que já nada tem a ver com o original, negociado pelo anterior Governo com a bênção de PSD e CDS, então na oposição.

Como é óbvio, o País já não aguenta.

E das duas, uma:
  • ou se trava a espiral recessiva já denunciada pelo Presidente da República - a propósito, alguém sabe onde está Cavaco Silva? - enquanto é tempo,
  • ou, chegados ao nosso trágico destino, já nada haverá para salvar.

A escolha é simples.

Porque, como escreveu um dia Victor Hugo, "entre um governo que faz o mal e o povo que o consente, há certa cumplicidade vergonhosa".

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