Nuno Saraiva . 02-02-2013
Durante o
Estado Novo, os interrogatórios da PIDE, a polícia política do regime, eram
muitas vezes testemunhados por um "médico" que caucionava os atos de
tortura. O excelso e corajoso doutor, insensível ao sofrimento dos
interrogados, incentivava os inspetores a prosseguirem com a inquirição, do
tipo custe o que custar, assegurando sempre que o detido "aguenta,
aguenta".
As
afirmações mais recentes de Fernando Ulrich, o presidente do BPI, remetem-nos
para esse tempo em que a doutrina oficial do pensamento único impunha a
filosofia dos "pobrezinhos mas honradinhos".
Na quarta-feira, dia em
que apresentou os resultados consolidados do exercício de 2012, Fernando Ulrich
estava impante - e com razão - com os lucros de 250 milhões que o banco a que
preside conseguiu arrecadar. Ficava-lhe bem, porém, um pouco de humildade que
lhe permitisse reconhecer que os números que apresentou só foram possíveis
graças à intervenção do Estado através do fundo de recapitalização da banca, ao
sacrifício dos contribuintes que ele parece desprezar e aos depósitos de gente
que, de hoje para amanhã, pode ficar com o estatuto de sem-abrigo.
Mas o mais
chocante nas palavras do banqueiro é o paternalismo, a insensibilidade, a
arrogância, a pesporrência e a sobranceria que elas revelam.
Interroga-se
Ulrich:
"Se os gregos aguentam uma queda do PIB de 25%, os portugueses não
aguentariam porquê? Somos todos iguais, ou não?"
E, pior do que esta defesa
despudorada e resignada do empobrecimento coletivo, é a desumanidade
demonstrada pela interrogação seguinte:
"Se você andar aí na rua, e
infelizmente encontramos pessoas que são sem- -abrigo, isso não lhe pode
acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode acontecer. E se aquelas
pessoas que nós vemos ali na rua, naquela situação a sofrer tanto, aguentam,
porque é que nós não aguentaríamos?"
Afirmações
deste tipo são próprias de corações empedernidos que, está bom de ver, jamais
conviveram com a realidade que nos rodeia. Quando se tem um pingo de
humanidade, e nos confrontamos com a crueldade de quem vive na rua, sem teto,
sem família e sem comida, a interrogação obrigatória não é "se aquelas
pessoas aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?", mas sim como é que
aquelas pessoas aguentam?
Fernando
Ulrich, como Isabel Jonet ou, para não ser acusado de sectarismo, Arménio
Carlos, são gente de referência nas mais diversas atividades. Têm
responsabilidades acrescidas de cada vez que abrem a boca, e têm de ter
consciência das repercussões que as suas palavras, mesmo quando mal medidas,
têm na sociedade portuguesa, sobretudo em momentos delicados como aqueles que
vivemos.
Mas Fernando
Ulrich é também a voz e, num certo sentido, o ideólogo de uma forma passadista
de pensar que, cada vez mais, vai ganhando terreno. A de que o Estado deve ser
caridoso em vez de solidário. E não, não somos todos iguais. Porque, como
sabemos, no caso dos bancos é bom que o Estado seja solidário na hora de
arranjar dinheiro, salvar as instituições e assumir os prejuízos.
Este é só
mais um exemplo de como a política e o Estado estão capturados pelo sector
financeiro. Outro tivemo-lo ontem quando da obscena tomada de posse de um
secretário de Estado - conferida por Cavaco Silva - que já foi administrador da
SLN, a holding detentora do BPN. Franquelim Alves, que ao que consta omitiu do
seu currículo esta passagem, terá reconhecido no Parlamento durante o inquérito
parlamentar à gestão do BPN que "a situação era conhecida" e,
"por razões cautelares", o Banco de Portugal não foi informado do que
se estava a passar.
São estes
personagens que, apesar de abrigados pelo Estado, passam a vida a rogar-lhe
pragas e a mal-dizê-lo. Veremos, no caso de Fernando Ulrich, quando um dia for
um "sem-abrigo" do Estado, se o banqueiro se aguenta
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