segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Ai aguenta, aguenta...

Nuno Saraiva . 02-02-2013



Durante o Estado Novo, os interrogatórios da PIDE, a polícia política do regime, eram muitas vezes testemunhados por um "médico" que caucionava os atos de tortura. O excelso e corajoso doutor, insensível ao sofrimento dos interrogados, incentivava os inspetores a prosseguirem com a inquirição, do tipo custe o que custar, assegurando sempre que o detido "aguenta, aguenta".
As afirmações mais recentes de Fernando Ulrich, o presidente do BPI, remetem-nos para esse tempo em que a doutrina oficial do pensamento único impunha a filosofia dos "pobrezinhos mas honradinhos".
 
Na quarta-feira, dia em que apresentou os resultados consolidados do exercício de 2012, Fernando Ulrich estava impante - e com razão - com os lucros de 250 milhões que o banco a que preside conseguiu arrecadar. Ficava-lhe bem, porém, um pouco de humildade que lhe permitisse reconhecer que os números que apresentou só foram possíveis graças à intervenção do Estado através do fundo de recapitalização da banca, ao sacrifício dos contribuintes que ele parece desprezar e aos depósitos de gente que, de hoje para amanhã, pode ficar com o estatuto de sem-abrigo.
 

 
Mas o mais chocante nas palavras do banqueiro é o paternalismo, a insensibilidade, a arrogância, a pesporrência e a sobranceria que elas revelam.
Interroga-se Ulrich:
"Se os gregos aguentam uma queda do PIB de 25%, os portugueses não aguentariam porquê? Somos todos iguais, ou não?"
E, pior do que esta defesa despudorada e resignada do empobrecimento coletivo, é a desumanidade demonstrada pela interrogação seguinte:
 
"Se você andar aí na rua, e infelizmente encontramos pessoas que são sem- -abrigo, isso não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode acontecer. E se aquelas pessoas que nós vemos ali na rua, naquela situação a sofrer tanto, aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?"
 
Afirmações deste tipo são próprias de corações empedernidos que, está bom de ver, jamais conviveram com a realidade que nos rodeia. Quando se tem um pingo de humanidade, e nos confrontamos com a crueldade de quem vive na rua, sem teto, sem família e sem comida, a interrogação obrigatória não é "se aquelas pessoas aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?", mas sim como é que aquelas pessoas aguentam?
Fernando Ulrich, como Isabel Jonet ou, para não ser acusado de sectarismo, Arménio Carlos, são gente de referência nas mais diversas atividades. Têm responsabilidades acrescidas de cada vez que abrem a boca, e têm de ter consciência das repercussões que as suas palavras, mesmo quando mal medidas, têm na sociedade portuguesa, sobretudo em momentos delicados como aqueles que vivemos.
Mas Fernando Ulrich é também a voz e, num certo sentido, o ideólogo de uma forma passadista de pensar que, cada vez mais, vai ganhando terreno. A de que o Estado deve ser caridoso em vez de solidário. E não, não somos todos iguais. Porque, como sabemos, no caso dos bancos é bom que o Estado seja solidário na hora de arranjar dinheiro, salvar as instituições e assumir os prejuízos.
Este é só mais um exemplo de como a política e o Estado estão capturados pelo sector financeiro. Outro tivemo-lo ontem quando da obscena tomada de posse de um secretário de Estado - conferida por Cavaco Silva - que já foi administrador da SLN, a holding detentora do BPN. Franquelim Alves, que ao que consta omitiu do seu currículo esta passagem, terá reconhecido no Parlamento durante o inquérito parlamentar à gestão do BPN que "a situação era conhecida" e, "por razões cautelares", o Banco de Portugal não foi informado do que se estava a passar.
São estes personagens que, apesar de abrigados pelo Estado, passam a vida a rogar-lhe pragas e a mal-dizê-lo. Veremos, no caso de Fernando Ulrich, quando um dia for um "sem-abrigo" do Estado, se o banqueiro se aguenta

 

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