quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A carta

ANDRÉ MACEDO
(André Macedo - DN)

Minha querida Joana, bonita a carta que me enviaste. Obrigado.

Há muito que não recebia cartas, exceto as do fisco e da brigada de trânsito. Multas, dívidas, taxa dos esgotos, o IMI, coisas dessas a que agora passei a ligar mais; coisas que me atrapalham e apanham desprevenido.

Quando pego nos envelopes sei que nunca são boas notícias. Abro-os e fico em sentido.

Passei a estremecer com aquilo que antes só me irritava. Agora até a rouquidão dos canos lá de casa me assusta, o assobiar da máquina de lavar roupa - vai parar, não vai parar? - também me trava a respiração.

Faço contas, orçamentos à la minute, receio sempre o pior. Tens razão: é difícil engolir tantos impostos e desemprego e ficar indiferente. Eu não quero ficar indiferente.




Perguntas-me o que acho do Gaspar. Já sabes o que penso: os ministros das Finanças chegam a galope e depois passam de cavalo a burro num instante. O Gaspar é igual. Às vezes lembra-me o Cunhal, deve ser das sobrancelhas felpudas. Tudo nele tem um ar inevitável, até o Orçamento que apresentou.

Como vês, já estou rendido: ele apresentou o único Orçamento que podia apresentar para fazer de conta que estamos a cumprir à risca o estúpido memorando e que vamos atingir as metas.

O jogo é esse: fazer de conta.

Ele sabe que tudo isto é impossível, uma perigosa mentira, mas vive naquela bolha só dele e da troika. Jura até que o consumo vai cair mas que a receita do IVA vai subir.

Como o explica?

Não interessa: é tudo um faz de conta.

Temos este papel de pobrezinhos cumpridores a desempenhar e Gaspar faz todo o teatro possível no Excel.

São anos e anos de estudos.

Sim, tens razão: não há alternativa porque a dívida pública é monstruosa. Se nos tirassem uma parte dela e nos aliviassem os juros que pagamos talvez houvesse uma saída... assim, nada feito, apesar de Gaspar insistir que o caminho é por aqui.

Sabes, ele disse no Parlamento que tinha exigido ao FMI uma clarificação sobre aquela história de os efeitos recessivos da austeridade terem sido mal calculados.

É obra este Gaspar: faz muito bem em perguntar, mas espanta-me que só agora se tenha interrogado e logo sobre uma coisa que até nos podia ser favorável. Não te parece esquisito?

Pronto, tens razão: sem o euro seria muito pior. Já estou a ver os jornais - preço do frango triplica, mortadela é um luxo - e isso, desculpa-me, até me faz sorrir.

Isso e a visita que Merkel nos fará em novembro. Disse um deputado que seria uma espécie de tour ao Afeganistão: ela vai entrar e sair do País a correr, como fez na Grécia. Eu só espero que faça sol nesse dia. Não gostaria de a desapontar em nada. É uma questão de imagem: falidos mas luminosos.

E pronto, querida Joana, é isto. Desculpa se te pesei demasiado e se te respondo por e-mail - mas convém ser rápido. Nunca se sabe o que nos pode ainda acontecer.

Um beijo

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