quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O crime do homem que nunca poderia tocar saxofone

(Sílvia Caneco, - ionline)

Constantino dirá que soprou com toda a força que tinha, "as máquinas é que não estão boas". Mas nos autos, afinal, consta uma taxa de 2,62 gramas de álcool por litro de sangue. Das duas uma: ou soprou uma vez com força ou são mentiras do PSP. Ele deixa tudo nas mãos de Deus.

Há problemas físicos que condicionam para sempre a vida profissional de um homem ou de uma mulher. Um estrábico nunca poderá ser piloto de aviões, uma mulher demasiado baixa nunca poderá desfilar nas passerelles e um homem sem fôlego nunca poderá correr os pubs de Nova Orleães a tocar saxofone. Ou sequer entrar numa banda filarmónica. São evidências com as quais estas pessoas têm de lidar.
 


Assim, ao olhar para Constantino, homem de 54 anos nascido na Guiné-Bissau, bem que podemos tentar ver um John Coltrane, com os seus beiços grossos a soprarem no saxofone, que nunca iremos conseguir, mesmo que nos esforcemos muito. Tudo porque Constantino, apesar de ser um homenzarrão (no que respeita à compleição física), é fraquinho de ar: isto é, não tem fôlego. E da mesma maneira que nunca poderá ser saxofonista, também nunca poderá ser um criminoso determinado. Constantino até pode conduzir bêbado, mas como vamos prová-lo? Sem sopro no balão não há talão, logo não há crime, logo Constantino tem de se habituar a viver com esta terrível constatação: nunca poderá ser o típico criminoso das estradas. E é por isso que chega a tribunal como um desobediente e não como um condutor alcoolizado, apesar de o agente que o autuou ter a certezinha absoluta de que, naquela noite, Constantino tinha bebido o suficiente para, num primeiro sopro no teste qualitativo, ter acusado 2,62 gramas de álcool por litro de sangue.

Mas Constantino tem outra versão, que conta à advogada antes mesmo de entrar na sala de audiências.

"Diz aqui nos autos que o senhor foi apanhado com um taxa de 2,62."

"Não é verdade, eu soprei e não deu nada", responde Constantino.

"Está a ver aquele aparelhozinho que você sopra e aparece lá um valor?"

"Sim, mas quando eu soprei eles disseram que não deu nada, por isso é que soprei mais vezes. Já sabia que iam inventar coisas."

"Diz aqui também que o senhor tinha sinais de ter consumido álcool, cheirava a álcool."

"Cheirar a álcool, cheiramos todos."

(Pequeno aparte: se calhar está na hora de irmos todos ao dentista para nos livrarmos desse bafo horroroso que nos persegue)

"Pedi para me levarem ao Santa Maria para fazer teste de sangue, mas eles recusaram", insiste o réu.

"E se fosse iria acusar?"

"Não, tenho a certeza que estava lúcido. Bebi apenas um copo de vinho, vinha de um funeral."

"O senhor é alcoólico?"

"Não, nem posso ser. O meu trabalho nem permite, sou segurança."

"O senhor tem uma compleição física forte. Portanto, ou bebe regularmente e por isso basta beber pouco para acusar esta taxa ou, de facto, tinha bebido demasiado nesta noite."

"Doutora, já lhe disse que é mentira, soprei e aquilo não deu em nada."

E será mais ou menos isto que Constantino, pai de três filhos - todos feitos com um intervalo de dez anos - irá repetir em julgamento. Frente à juíza, irá apenas acrescentar outros detalhes: que o mandaram parar porque passou um amarelo, mas os outros atrás dele passaram o vermelho e os agentes não fizeram nada, que mandaram o carro seguir num reboque e ainda não lhe disseram onde ele está, que lhe dirigiram acusações racistas e atiraram a pasta de documentos ao chão de propósito para o humilhar. De resto, garantirá que em momento algum lhe foi mostrado o valor do primeiro teste e que soprou com toda a força que tinha, "as máquinas deles é que não estão boas".

A advogada ainda convenceu a mulher de Constantino a depor mas a Dona Segunda (sim, é mesmo o nome da senhora) teve pouco a dizer além de que não estava presente e que o homem é dos bons e sempre trouxe dinheirinho lá para casa.

Depois vem o agente contrariar totalmente a versão do réu. O PSP dirá que Constantino passou um sinal vermelho, fez um primeiro teste qualitativo que acusou 2,62 e depois andou a fingir que soprava "mas não assoprava nada", tendo um talão revelado "sopro insuficiente" e outro "amostra incorrecta". Mais dirá que lhe perguntou se tinha algum problema físico e se queria ir fazer teste de sangue no Santa Maria, mas este recusou.

E desta vez Constantino põe o dedo no ar para falar e parece um cão danado. "Não vou dizer mais nada à senhora excelência porque estou muito indignado, com a lágrima nos olhos. Um homem tem de dizer a verdade, isso é que um homem. Já sabia que iam escrever mentiras. Que seja o que Deus quiser, não digo mais nada."

Mas procuradora e juíza acreditam na versão "credível" do agente e não na do arguido, que por sinal já foi condenado por vários crimes da mesma natureza e até já cumpriu 88 dias de prisão efectiva. Constantino sai condenado a 400 euros de multa e pena acessória de inibição de conduzir por quatro meses.

No final, todos esperavam que o homem que depositou a sua esperança em Deus quisesse protestar, mas Constantino esqueceu-se das teorias da conspiração e saiu em silêncio, nesta segunda-feira, de braço dado com a sua Segunda.

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