Porfírio Maria, 52 anos, ex-cortador de carnes, não tem carta nem soube escolher o carro. Uma manhã, estava o neto atrasado para ir para a creche e não resistiu...
Porfírio Maria. Não é por este nome que está sentado na sala de audiências, mas di-lo tão baixo que é como se pedisse desculpa pelo incómodo de se chamar assim: Porfírio Maria. Também não são as socas Crocs, de cor azul-bebé - bebé de mais para um homenzarrão destes - que o trazem aqui. A culpa é toda de um carro. Tivessem os homens tantas exigências a escolher um carro como a seleccionar uma mulher e nada disto teria acontecido. Um homem nunca devia ter estacionado à porta de casa um carro com características que não quer na esposa: possessivo, autoritário, mandão. Ou, visto de outro ponto de vista, um carro demasiado sexy. Como as mulheres sensuais, podem ser perigosos: piscam o olho e o caldo entorna-se.
(imagem colhida no blogdoprofessorhugo.com)
Porfírio Maria, solteiro, 52 anos, cortador de carnes em tempos, porque agora já não lhe dão carne para cortar, deixou-se cair na armadilha num dia de Julho, às nove e picos da manhã. Foi apanhado ao volante do seu veículo ligeiro irresistível, sem habilitação legal para o conduzir.
"Por que é que não tira a carta?", pergunta a juíza.
"Senhora doutora, eu pensei nisso. Mas na altura trabalhava e agora não."
"Se sabia que não podia, porque pegou na viatura?"
"Era só um quilómetro e tal. Ia levar o miúdo à creche, que é perto de casa, mas já ia atrasado."
"Mas sabe que não pode, não sabe?"
"Sei sim. Mas foi assim, o carro estava ali..."
Este é o momento em que Porfírio confessa a sua queda por carros mandões ou é a prova de como um veículo jeitoso pode tramar a vida de um homem. A juíza chama-o à terra, como se o seu acto derivasse de uma patologia:
"O problema não é com o carro, é consigo próprio. O carro não o obriga a conduzir, pois não?"
Se Porfírio tivesse cara de Michael Knight ("O Justiceiro"), a gente até acreditava nessa hipótese.
O homem que tem uma branca e não se lembra de onde mora tem uma aflição desproporcionada para o seu crime, já que o cometeu várias vezes: tem duas condenações "por factos da mesma natureza" e um processo pendente, à espera de julgamento, também por conduzir sem carta. O procurador traça o diagnóstico: Porfírio tem "uma personalidade com propensão para a prática deste crime". É lido o cadastro. A primeira condenação foi em 1996, por condenação sob o efeito de álcool. A segunda em 2003, por condução sem habilitação legal. Ambas tiveram pena de multa e inibição de conduzir por período de meses, que foram cumpridos.
Ora, atendendo aos factos e às datas, não se percebe como Porfírio Maria, não tendo carta, pode ter sido condenado por conduzir embriagado. Teve a carta mas perdeu-a? Nunca teve carta mas em 1996 os agentes não deram por isso? Usava um documento falsificado?
Há uma nuvem de fumo sobre as nossas cabeças, mas não na cabeça da juíza, que salta essas perguntas. Esclarecemos o mistério à saída com uns agentes da PSP: a carta pode ter sido cassada por excesso de contra-ordenações e isso não consta do cadastro. Só isso. Estivemos nós com tanta imaginação a tecer teorias do mais alto nível e a causa pode estar neste pormenor insosso.
Do mal o menos, sempre ficamos a saber que tem andado de mais o carro jeitoso do Porfírio sem carta.
Porfírio Maria tem a quarta classe, já não tem trabalho a cortar carnes e vive de uns biscates na restauração por 25 euros por dia. Tem duas filhas: uma é menor; outra, aos 19, já lhe deu dois netos. O defensor oficioso entende não se justificar pena de prisão, já que existem antecedentes criminais mas que beneficiam do carácter de antiguidade: o carro ainda existe e já não é a primeira vez que é apanhado, mas já lá vão uns anos desde 2003, entretanto deve ter atinado.
Tem o Porfírio Maria alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
"Estou muito arrependido e a prisão só ia afectar os meus netos."
Veredicto: Porfírio Maria terá de pagar mil euros, em substituição de 133 dias de prisão. O equivalente a 40 dias de biscates na restauração.
"Se não puder pagar, pode pedir para fazê-lo em prestações ou substituir por trabalho comunitário."
Porfírio pode deixar-se daquela aflição. Nem tudo é tão mau como parece no Código Penal. A pena por um crime pode ser tudo o que um avô quiser.
(Sílvia Caneco - Jornal i)
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