segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Ovos de serpente

Ovos de serpente


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Os grandes males começam por vezes com uma pequena afronta, a mancha inicial que, por ser pequena, se perdoa ou ignora, mas há-de alastrar.

Começam por prevenir-nos de que não podemos comer bife todos os dias. Ou que não podemos todos ter acesso aos mesmos tratamentos médicos. São frases que se apresentam como razoáveis, que pretendem apelar ao nosso bom senso e quem as profere garante não pretender ofender os mais pobres e muito menos pôr em causa os direitos dos mais vulneráveis.

E de um ponto de vista estritamente racional e abstracto, imaginando que estamos a falar de células numa folha de cálculo, por exemplo, até podemos dar por nós a concordar. É verdade, não se pode comer bife todos os dias. E para quê desperdiçar um tratamento caro em alguém por quem a ciência pouco mais pode fazer?

Mas o que está a ser dito de forma tácita é que não podemos TODOS ter acesso às mesmas coisas, que elas continuarão disponíveis, sim, mas só para alguns, e a selecção há-de ser feita.


Não sabemos ainda por quem nem obedecendo a que critérios, mas há-de ser feita. E se formos razoáveis, aceitaremos que não podemos ser todos a aceder ao mesmo, até porque um bife diário é mau para as coronárias e sabe-se lá se haveremos de ter direito a uma angioplastia quando precisarmos dela, ao preço a que está o bloco operatório.

Acontece que não há razoabilidade nem racionalização nem refundação, nem qualquer eufemismo desta novilíngua, que justifique a perda de direitos essenciais.

E quando entendemos como aceitável a perda selectiva de direitos adquiridos, abrimos caminho para que essa selecção se amplie sem freio.

Conta o escritor Stefan Zweig nas suas memórias, “The World of Yesterday”, que pouco mais de uma semana depois de ocupar Viena, Hitler decretou a proibição aos judeus de se sentarem nos bancos de jardim. Não havia nenhuma justificação para negar a um cidadão esse direito, mas era, apesar de tudo, um pequeno direito que se perdia, e a medida, embora gravosa, passou quase despercebida, até porque em breve se tornariam prática corrente imposições muito mais cruéis.

A mãe de Zweig, que era já por essa altura uma octogenária, desistiu de sair de casa para os seus passeios diários porque já não podia descansar no banco de jardim a meio da Ringstrasse, e sem esse descanso o passeio fazia-se insuportável.

Em face de tudo o que se lhe seguiu, já ninguém recorda essa primeira medida, mas ela abrigava o ovo da serpente.

Virão dizer-me que evocar o nazismo como comparação é um exagero.

Eu prefiro pensar que é ténue a linha que nos separa da barbárie e que a temos a rondar em cada momento de crise.



ZF: não é exagero, não!

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